Castro Soromenho
1921-1962


TÁBUA BIOGRÁFICA

1910 - Nasce a 31 de janeiro, em Zambézia, Moçambique. Realiza a instrução primária e secundária em Portugal.
1925 - Regressa a Angola.
1931 - Exerce as funções públicas de administração colonial. É aspirante no exercício de Chefe de Posto no interior de Angola.
1936 - Inicia sua carreira de jornalista em Luanda, no Diário de Luanda.
1937 - Vai para Lisboa e é enviado ao Rio de Janeiro como correspondente do semanário português Humanidade.
1938 - Regressa a Lisboa. Publica Nhári, primeiro livro como escritor.
1939 - Noite de Angústia, romance.
1943 - Rajadas e Outras Histórias, contos. Abandona o jornalismo profissional para dedicar-se à literatura.
1945 - Calenga, contos.
1949 - Terra Morta, romance.
1957 - Viragem, romance.
1961 - Na Universidade de Wisconsin, de janeiro a julho, rege o curso de Literatura Portuguesa. Reside em Paris de fins de 1961 a dezembro de 1965.
1965 - Em dezembro, parte para São Paulo, onde passa a residir.
1966 - Na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, dá um curso sobre Sociologia da África Negra. Colabora no Suplemento Literário d' O Estado de S. Paulo.
1967 - Torna-se professor colaborador junto à cadeira de Sociologia da mesma faculdade.
1968 - Na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Araraquara, inicia um curso livre de Sociologia da África Negra. Falece em São Paulo, a 18 de junho.


   [...]
   CALENGA nasceu numa aldeia na floresta, onde só o homem da sua tribo não temia afoitar-se pelo labirinto dos seus caminhos. Não havia memória de por ali ter passado gente de outro clã.
   A floresta deitava raízes na margem de um rio e estendia-se cobrindo terra chã até orlar uma planície. Os homens não conheciam toda a floresta. Nem sabiam que para além da floresta havia uma planície.
   A aldeia ficava para as bandas do Nordeste, perto de uma ribeira azul de areias brancas e de seixos, um dos braços os do rio que limita a floresta.
   Os homens da tribo de Calenga chamavam-se calambas e eram pescadores e caçadores de antílopes.
   A aldeia dos calambas não tinha palhotas. As sua habitações tinham sido abertas em pequenos morros de salalé. Habitavam dentro dêsses morros duros como pedra, que legiões de térmitas construíram em longos anos, onde elas viviam em extensas e delgadas galerias, cruzando-se em todos os sentidos. Quando uma dessas galerias se abria dentro do buraco onde se deitava o calamba, estabelecia-se pavor, e o homem matava as térmitas para não ser por elas devorado. Só em presença desse perigo é que o homem matava as térmitas. De resto, deixava-as trabalhar à vontade para aumentarem o morro, onde êle, depois do tempo o endurecer, alargava a casa. Então, o calamba podia arranjar mais uma mulher e agasalhá-la sob a sua vista.
   No morro mais alto, com o cume metido entre as ramagens de uma mafumeira, vivia o soba. Foi ali que nasceu Calenga. Atrás da casa de seu pai, entre árvores frondosas, dentro de morros encimados por cornos de antílopes, cercados por uma paliçada de arbustos com flores vermelhas, dormiam sono sem fim três sobas calambas, cada um acompanhado por sua primeira mulher, escravos e crianças. E ao lado, um velho passava os dias sentado à porta da sua casita, velando pelo sono eterno dos maiores do povo.
   Calenga nunca se abeirava dos túmulos dos seus avós, porque tinha medo dos mortos e do velho que os guardava. Para as bandas da ribeira, mas longe dos caminhos das lavras, ficava o cercado da mucanda dos rapazes. Ali nasciam os homens novos do clã, onde só é homem aquele que foi circuncidado. Nessa terra sagrada, Calenga foi iniciado nos ritos da circuncisão, tornando-se um verdadeiro calamba.
   Ali lhe foram revelados os segredos da raça e os mistérios da terra. Foi o mais velho de todos os velhos da tribo quem lhe falou, e aos seus companheiros, sobre essas coisas terríveis que anoiteceram a alma da sua raça.
   [...]


Castro Soromenho segundo Jorge de Sena

   [...]
   De modo que a elaboração literária de um compromisso entre as literaturas africana e européia, levada a cabo na metrópole, é uma conseqüência deste estado de coisas. E é essa, literariamente, a situação da obra de Castro Soromenho.
   Neste volume, reuniu dois contos o autor de Rajada. A tentativa de criações de personagens romanescas a partir do folclore e da história de povos indígenas, e o desejo de sugerir estilisticamente as perífrases e o ritmo repetitivo da narração oral dos "primitivos" -características de C. Soromenho- estão, aqui, demasiado patentes. E não há a suficiente individuação das figuras, indispensável à sua vigência como ficção. É extremamente difícil e delicado equilibrar os elementos etnográficos e os elementos romanescos, mas Soromenho tem-no conseguido, por vezes com raro brilho e, mesmo aqui, há momentos muito sugestivos, como aquele passo em que os caçadores falam saudosamente para a sua aldeia distante. Mas uma coisa é descrever quadros ou narrar acções colectivas, e outra dar a esses quadros e a essas acções o interesse da continuidade, isto é, ligá-los com o que está antes e o que virá depois. A estas histórias falta uma íntima justificação romanesca. E, quando assim é, o ritmo repetitivo do estilo torna-se de uma artificialidade que mesmo um grande prosador não seria capaz de disfarçar. Tem Castro Soromenho a preocupação de escrever prosa poética, de atribuir à imprecisão da linguagem e da notação efectiva a maior responsabilidade no evocar de um ambiente. Mas porque, quase sempre há diálogos, e é apenas dito quem e o que falou, há sempre, entre o leitor e a narrativa, uma cortina de prosa, que não deixa distinguir o que realmente se passa, mas sim o que o autor nos transmite sobre do que se passou. C. Soromenho possui o talento literário e a experiência suficiente para lutar contra esta sua tendência. A prosa poética não é, de modo algum, incompatível com a intensidade e a firmeza, além de que o emprego quase indiscriminado do pretérito perfeito onde por vezes se impunha o mais-que-perfeito quebra, nessa prosa mais que noutra, a indispensável unidade de tempo dos sucessivos graus da narração.
   De uma maneira geral, esta prosa poética sucedeu, entre nós, à prosa artística a que, nestas colunas, já tive ocasião de me referir. A maior parte dos modernos prosadores escreve assim os seus romances e os seus contos. Sente-se o desejo, quando não a imperiosa necessidade, de alongar. Bem sei que a prosa portuguesa raras vezes primou pela vivacidade. E é talvez por isso que a vivacidade se tem refugiado tão apaixonadamente nas intenções. Querer elegiacamente assumir um tom épico de "estavas tu, linda Inês, posta em sossego"... Mas isso é outra questão. O que interessa acentuar, a propósito de C. Soromenho, cuja obra se tem desenvolvido tão isolada e seriamente, é como a literatura colonial sendo africanizante, pode libertar-se do exotismo fácil, para tentar uma tradução discreta de alheias mentalidades.

JORGE DE SENA



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