Eduardo Lourenço
1923

TÁBUA BIOGRÁFICA

1923 - Nasce em São Pedro do Rio Seco (Almeida), a 23 de maio.
1934 - Freqüenta o Colégio Militar, em Lisboa, até 1940.
1945 - Conclui na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra a sua licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas.
1947 - É assistente de Filosofia na Universidade de Coimbra até 1953.
1949 - Heterodoxia I.
1953 - Passa a exercer as funções de leitor do Governo Português nas Universidades de Hamburgo (1953-54), Heidelberg (1954-55) e Montpellier (1955-58).
1955 - O Desespero de Miguel Torga e o das Novas Gerações.
1958 - Torna-se regente da cadeira de Filosofia, como professor convidado da Universidade da Bahia, onde permanece por dois anos. 1960 - Exerce as funções de leitor do Governo Português em Grenoble (1960-65) e Nice (1965-68).
1967 - Heterodoxia II.
1968 - Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista.
1969 - É nomeado assistente associado na Universidade de Nice, onde é mestre-assistente e professor associado até 1988, quando se aposenta. Como crítico literário e ensaísta, tem colaborado regularmente no Jornal de Letras, de Lisboa, e em outros jornais e revistas.
1973 - Pessoa Revisitado.
1974 - Tempo e Poesia. Recebe o Prêmio Casa da Imprensa por Pessoa Revisitado.
1978 - O Labirinto da Saudade.
1981 - Recebe a ordem de Santiago de Espada.
1986 - Fernando, Rei da Nossa Baviera. Por este livro recebe o Prêmio Nacional da Crítica e o Prêmio de Ensaio Literário Jacinto do Prado Coelho (1987).
1988 - Nós e a Europa ou As Duas Razões. Recebe o Prêmio Europeu de Ensaio "Charles Veillon", por este livro e pelo conjunto da obra.
1994 - O Canto do Signo.
1995 - Recebe o título de doutor "Honoris Causa", homenagem da Universidade de Coimbra.
1996 - Recebe o prêmio Camões e a Medalha de Mérito Cultural do Governo Francês.


   [...]
   É vão fingir que não sabemos que o "mito-Pessoa", tanto em si como no seu estatuto poético de amplitude hoje universal, repousa essencialmente na encenação prodigiosa a que Pessoa submeteu o seu radical sentimento de inexistência. Refiro-me à comédia dos Heterônimos, que tanta tinta - e raramente boa - tem feito correr. O célebre "drama em gente", a invenção dos Pessoa-outros destinados a cumprir pelo único que havia os sonhos de felicidade ou grandeza imaginárias que só de os pensar o destruíram, é o último acto do longo processo de dissolução do Eu inaugurado pelo Romantismo. Dos "duplos" demoníacos de Hoffmann a Dostoievski, dos pseudônimos de Kierkgaard às máscaras de Browning, até o "je est un autre" de Rimbaud, é larga a lista dos que se viveram sem salvadora crença que durante séculos nos inculcaram como feitos à imagem de Deus e, como ele, unos e virtualmente imortais. Mas também, de portas adentro, Pessoa foi o termos de um claro processo de "heteronimização" que tem as suas raízes em Garret e já quase uma configuração pessoana em Eça de Queirós (Fradique), sem esquecer, naturalmente, os "dois" Anteros que, em silêncio, devoraram o verdadeiro. A criação de Fradique Mendes e, sobretudo, o espírito do seu retrato, como personagem de alma múltipla, capaz de esposar com igual paixão e indiferença religiões, metafísicas, costumes alheios, perfeito "dandy" da verdade inacessível, anuncia e desenha já o espaço de um heteronimismo cultural de que Pessoa será, justamente, o mítico coroamento.
   [...]

EDUARDO LOURENÇO, Fernando, Rei da Nossa Baviera.


   [...]Seria insensato supor que entre os Portugueses não se manifestasse como na humanidade, segundo Aristóteles, aquilo que nos eleva a dignidade humana: o apetite de saber, a paixão da verdade. Mas da verdade o que mais nos fascina é a paixão que ela nos comunica e não o processo em que consiste a sua busca com a visão nela do que falta e no do que nela resplandece. Porque séculos de opaca e profunda ortodoxia nos ensinaram e bem que Deus é a Verdade e a verdade para nós é Deus. Toda e qualquer verdade. Quando o religioso perdeu o seu valor ouro ficou a política e, hoje, a ideologia. Mas a mentalidade é a mesma. Esta adesão, ou antes, apropriação da "verdade"à nossa mentalidade tem o seu reverso com a mesma paixão a abandonamos por um niilismo de singular conteúdo. Como dizia Pessoa: "ou o Tudo ou o seu nada". Pessoa extrapolava aliás a sua excepção: essa "paixão" não é de ordem intelectual entre nós mas prática. No fundo da nossa alma, como Pascoaes o viu bem, ficamos pagãos, familiares dos deuses e do Destino "que mais que deuses", cujo veredicto. Por absurdo, nos satisfaz paradoxalmente. Daí essa forma de indiferentismo, após o espasmo orgânico do grito, tão característico do nosso comportamento histórico. "Tinha de ser". É o nosso lado árabe, porventura. Profundo poço onde mergulham as raízes insondáveis do verdadeiro mistério do nosso comportamento histórico: realizar o mais valioso de nós como colectividade e como indivíduos, não como agentes de propósitos maduramente pensados, estruturados, mas como actores de gestas que tudo parecem dever ao impulso da vontade, do desejo, do inconsciente. Logo que nos aproximamos da linha tórrida do racional tornamo-nos tímidos, ficamos paralisados, perdemos a imaginação. Numa página do seu Diário, Torga nota com inegável acento voltairiano que ninguém se arrasta de joelhos em Fátima como o quinto ano do liceu. Aceitemos a observação, mas para concluir que é justamente ao nível dessa consciência medíocre, na ordem humana do português cultivado (semi) que misteriosamente se manifesta a falta de audácia, o conformismo, a lamentável ausência de originalidade e de violência dos que conquistaram os céus da história ou que atravessam os Pirenéus a pé descalço. [...]
   [...] Durante décadas tudo, ou o essencial, parecia estar sempre noutro lado, nos Paris, nos Londres, nas Nova Iorque que nós não éramos, nem podíamos ser. Seria uma ilusão supor que por obra mágica, tanto o gap cultural quanto o tecnológico, características da nossa existêncial nacional, desapareceram ou possam desaparecer. Mas é um facto que o seu reflexo no plano literário já não apresenta o mesmo perfil. Nesse capítulo estamos em plena "revolução cultural".
A visão de um determinado grupo social, o seu pedantismo calculado, ou antes, o seu cultivado snobismo já não têm o monopólio da pressão cultural. Outros valores vieram substituir-se ao contemplativismo (aliás interessado) da vida artística, ao seu gozo como coisa privada e privilegiada. Dessa sociedade guardiã ou inspiradora das regras do jogo cultural só subsiste o instinto, que parece imortal, de aceitar como um jogo suplementar a nova existência de formas onde ela é negada e abolida. Sempre foi fácil a marqueses imaginar-se ou vestir-se de pastores. Mas para os pastores a metamorfose só existe nos contos de fadas.
   [...]

EDUARDO LOURENÇO, Labirinto da saudade.



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